O projecto de estudo arqueológico sobre as dinâmicas de comunidades quilombolas no Maranhão, integrado no âmbito do Mestrado em Arqueologia IPT-UTAD, tem como preocupação abordar os mecanismos adaptativos da diferentes comunidades, e decorre não apenas de uma preocupação académica, mas de uma óptica de resgate da memória para uso das próprias comunidades.
O projecto incide sobre duas comunidades remanescentes do Maranhão: Itamatatiua (Alcântara) e São Sebastião dos Pretos (Bacabal). Os dois quilombos apresentam distinções na sua relação com a malha urbana regional, mas ambos os sítios são comunidades organizadas, que buscam o uso dinâmico do território, a sustentabilidade de suas práticas culturais, sociais e económicas.
O estudo regista diversos elementos comuns, que conferem unidade a estas realidades: agricultura de subsistência, casas rústicas de taipa, danças tradicionais como o tambor de crioula, entre outros; cultivo em parte dos mesmos produtos. Mas o estudo arqueológico assinala sobretudo a diversidade, que é um elemento central do resgate identitário.
A comunicação salienta algumas particularidades das duas comunidades, intrínsecas em seu contexto histórico-sócio-económico, como seja a simetria de papéis no que tange as funções dos géneros dentro dos grupos, pois enquanto em Itamatatiua as mulheres são dominantes, na comunidade de São Sebastiao dos Pretos, a figura masculina desempenha tal papel.
Palavras-chave: Quilombos – Maranhão – Arqueologia da paisagem
Arqueologia, Identidades e Mecanismos de Adaptação
A arqueologia nasceu, no século XIX, do cruzamento da tradição antiquarista que desde o século XVI organizava colecções de testemunhos das civilizações antigas, com o olhar eurocêntrico dos estudos etnográficos que desde o século XVIII organizavam a percepção das potências coloniais sobre “os outros” e, finalmente, com o rigor disciplinar da geologia do quaternário com a sua preocupação de compreender a evolução biológica, e dos seres humanos no quadro dela. Do antiquarismo a arqueologia herdou os objectos, da etnografia herdou a arrumação no espaço humano e suas dinâmicas, da geologia herdou a arrumação no tempo assumindo a estratigrafia como coluna vertebral.
A arqueologia, hoje, mantém essas preocupações e essa abordagem duplamente estratigráfica e espacial permanece num campo especializado no conhecimento da cultura material, mas assume-se claramente como uma via de abordagem aos mecanismos de adaptação das comunidades humanas aos seus contextos ambientais (neles se incluindo as outras comunidades humanas, com as quais interagem).
A arqueologia, numa sociedade que assume de forma crescente o conjunto de vestígios materiais do passado como património, e que assume este como herança de toda a Humanidade, é assim um campo interdisciplinar que se articula com a história e a antropologia, mas também com a sociologia ou o planeamento e ordenamento do território. Trata-se de uma leitura do território, das suas transformações no tempo e da dinâmica dos grupos humanos a elas associados, suas identidades, continuidades e descontinuidades.
O comportamento dos grupos humanos é largamente condicionado pela percepção que têm do espaço circundante (nele se incluindo as relações com outros grupos humanos). A arqueologia da paisagem é, neste sentido, mais ampla do que a arqueologia espacial, ou do território, pois não é meramente descritiva em relação aos potenciais “recursos” disponíveis (descrição que, contudo, é sempre essencial). Trata-se, no entanto, não apenas de reconhecer o universo dos possíveis comportamentos, mas também o de tentar reconstruir a compreensão que esses grupos tinham do território, ou seja, as suas próprias paisagens. Neste sentido, é um conceito que se aproxima do de cadeia operatória (cujo fim último não é o da mera descrição, e sim o da compreensão da sequência conceptual e gestual que conduz a um determinado produto). A arqueologia da paisagem visa reconstruir o processo de apreensão do território e as suas dinâmicas de transformação.
A percepção do espaço que cada grupo humano tem, em diversas escalas, condiciona as formas como nele pode intervir (OOSTERBEEK, 2009). A marcação territorial, ou antropização, através de recursos como a arte rupestre ou a arquitectura, tende a reproduzir mapas mentais que impõem ordem no caos de formas, cores ou sons percepcionados. Em teoria, pois, será possível uma aproximação às percepções do espaço através do estudo da distribuição espacial e dos processos de uso dos vestígios arqueológicos. A organização do espaço é crucial nas sociedades, em particular nas que não possuem escrita, pois tende a corporizar as memórias colectivas (como uma mnemónica) e a promover a sua conservação (HALBWACHS, 1968). LÉVI-STRAUSS (1974) recorreu a este aspecto para construir o seu modelo de caracterização estrutural binária, focando a dimensão social do espaço (e do tempo) e sublinhando que a diferenciação entre os grupos humanos estava largamente dependente das suas representações do espaço. Já em 1937, EVANS-PRITCHARD (1969) havia chamado a atenção para a noção de que espaço e tempo são construções culturais, argumentando que embora algumas características do espaço fossem condicionadas pelos factores físicos (por exemplo os obstáculos naturais que podem separar dois territórios), a noção de espaço é sobretudo condicionada pelo que designou por distâncias estruturais (como as redes de parentesco). Nessa ocasião, ele valorizava também a mente individual, no quadro de um conceito de pertença (“cieng”).
O Mestrado em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre, que em Mação (Portugal) é ministrado pelo Instituto Politécnico de Tomar e pela Universidade de Tráas-os-Montes e Alto Douro, está estruturado em cinco grandes áreas temáticas: Pré-história (que inclui as dimensões antropológica, etnográfica e socio-cultural), Geologia do Quaternário (que estrutura a coluna vertebral da pesquisa arqueológica), Paleoantropologia (que estuda a evolução biológica da espécie e as suas conexões culturais), Métodos e Técnicas (que incluem as dimensões técnicas da arqueologia, mas também a paleoecologia) e Museografia e Didáctica (que inclui a gestão e educação patrimoniais). Em paralelo, decorre o Mestrado em Técnicas de Arqueologia do Instituto Politécnico de Tomar, que desenvolve em especial as vertentes de Gestão Patrimonial, Informática Aplicada, Arqueologia Sub-aquátia, Geo-arqueologia e Arqueologia Experimental. Em conjunto com o “Grupo de Quaternário e Pré-História do Centro de Geociências”4, os Mestrados referidos estruturam a formação em diversos projectos de base geográfica, um dos quais, iniciado em 2009, se desenvolve no Estado do Maranhão. Actualmente, diversos estudantes desenvolvem pesquisas sobre arqueologia urbana de São Luís, sobre a temática dos direitos das comunidades e sobre os quilombos. O presente texto foca a pesquisa nos quilombos.
Os Quilombos no Maranhão
Para entender o processo de estruturação de uma comunidade rural quilombola, sobretudo no que diz respeito à definição de sua forma de organização espaço-territorial, é preciso compreender o processo desencadeador da existência dessa no Brasil, que foi o período escravocrata no país, desde a chegada dos primeiros negros até a ‘libertação’, por meio da Lei Áurea. Como acontece em todo processo de mudanças, a abolição da escravatura, em 1888, mexeu com as estruturas socioeconômicas e culturais de um país cuja força de trabalho estava condicionada às mãos e braços cativos e significou a necessidade de adequação do Estado e de uma sociedade escravocrata, de uma economia rural e dependente à nova situação de mão-de-obra livre, sem, no entanto, estar preparada. Isso implicou no princípio de decadência de várias províncias, dentre as quais o Maranhão, em particular, a cidade de Alcântara, que ainda hoje, constitui-se num estado rural.
Neste quadro, salienta-se primeiramente a importância do desenvolvimento de pesquisas científicas no território das chamadas comunidades remanescentes , quilombos e/ ou terras de preto no estado do Maranhão. De facto, são comunidades protagonistas de um universo cheio de diferenças, débitos, preconceitos, intolerâncias, negação dos seus direitos e descrenças das mudanças pelo processo natural de sua adaptação.
Haja vista as peculiaridades existentes nestes cenários, essas destacam-se como motor propulsor aos componentes intrínsecos à abordagem em questão. Pois, apesar das rupturas ao longo dos períodos históricos, as pressões, êxodos e reversões…, as mesmas se mantiveram firmes no que tange esses mecânismos, ou seja, os processos de adaptação ao longo do tempo e espaço territorial, de forma a preservar sua identidade ancestral sem perder sua referência.
A pesquisa arqueológica sobre os quilombos valoriza a relação das comunidades com o complexo material por elas construído, destacando não apenas os artefactos móveis mas, em especial, a organização do espaço e a sua antropização (através da arquitectura ou de outros processos). No presente texto são focados dois quilombos em particular: Itamatatiua (Alcântara) e São Sebastião dos Pretos (Bacabal). Os dois quilombos ilustram a diversidade, mas também algumas convergências importantes, nas estratégias de adaptação historicamente geradas.
A pesquisa arqueológica procede, actualmente, ao registro exaustivo do ordenamento espacial das existências, cruzado com a identificação das cadeias produtivas (agricultura e artesanato, com destaque para a olaria) e com o estudo das relações de parentesco e de propriedade, que estruturam a comunidade. Neste processo, os inquéritos orais ocupam um lugar central no estudo.
Itamatatiua5
Localizada a vinte e dois quilômetros da capital, São Luis, Alcântara foi, antes de ser erigida à condição de vila, no século XVII (1648), uma aldeia indígena chamada Tapuitapera. Nesse período, sua ocupação se deu progressivamente com a chegada dos primeiros colonos portugueses, junto com as ordens religiosas dos Carmelitas, Mecedários e, no século seguinte, dos jesuítas, tornado-se nas primeiras décadas do século XIX um importante centro produtor e exportador de arroz, algodão e sal. A mão-de-obra escrava negra, em substituição à indígena de início explorada teve papel fundamental. Nesse contexto, a ordem dos Carmelitas6 teve papel importante quanto ao processo de dominação e, sob aspectos pseudo-desenvolvimentista, contribuiu para o surgimento de uma comunidade – as Terras de Santa Teresa ou comunidade de Itamatatiua, também considerada ‘Terras de Santo’, por se autointitularem os “negros de Santa Teresa” e Terras de Preto; que não advém de uma vila literalmente constituída por escravos fugidos, mas de uma comunidade rural, fruto de uma propriedade privada outrora pertencente à ordem dos Carmelitas7.
Doada à ordem em 1745, a povoação da comunidade teve princípio, segundo LIMA (1998), de um casal de negros escravos dados ao convento em testamento da Sra. Margarida Pestana; e ainda segundo LIMA, no ano de 1797, o reverendo Prior João Alves, em seu inventário-declaração dos bens pertencentes ao Convento do Carmo, em Alcântara, declarou que a fazenda dedicada a Santa Teresa D’Avila de Jesus compunha “135 escravos entre homens e mulheres; capazes de serviço, 63; doentes e velhos, 23; e menores, 49”.
Com a abolição da escravatura e a independência do Brasil, Alcântara viveu, junto com o Estado, seu momento de decadência e deixou de ser berço de uma sociedade fidalga, com grandes construções (palacetes, igrejas, comércios), investimento intelectual (os jovens ricos estudavam em Coimbra, Porto, etc.) e todas as ‘benfeitorias’ que outrora tivera sua “Idade do Ouro Alcantarense”, quando houve o crescimento e expansão de muitas fazendas e engenhos e onde o gênero mais importante cultivado era o algodão, exportado para a Inglaterra, em plena Revolução Industrial. Nesse embalo, as ordens religiosas também foram afetadas, o que, no caso de Itamatatiua (povoação periférica de Alcântara), provocou a saída dos Carmelitas da fazenda, deixando-a para os ‘negros de Santa Teresa’; sendo que na realidade as terras ficaram, assim como todos os bens da Ordem do Carmo, para a União.
Donos da terra de Santa Teresa por conta da saída Carmelita, mas sem o registro efetivo, os negros de Itamatatiua lutam hoje para obter a titulação das terras que ocupam, junto ao Governo Federal, por meio do INCRA8. O processo de titulação é precedido da certidão de reconhecimento, que a comunidade recebeu em 04.05.2006, emitida pela Fundação Palmares9, e que tem entre sua principal condição, a autodefinição como comunidade remanescente de quilmbolo10; o que suscita discussões quanto à idéia de que, na realidade, tratam-se apenas de comunidades rurais, com exceção de algumas de fato advindas da formação de quilombos ou aquilombados11. Sob esse aspecto, Itamatatiua não se inseriria nessa exceção já que fora propriedade particular deixada aos negros após a abolição, e desde então, vem constituindo seu espaço territorial.
Os olhos de uma negra Itamatatiua
Itamatatiua, que significa ‘pedra, peixe e rio’, faz parte do território de Alcântara e tem fronteira com duas outras comunidades, de onde vem muitos dos laços consaguíneos e sócioculturais: Tubarão e Mocajituba12. Assim como muitos sítios quilombolas no país, sofre com a falta de serviços básicos e públicos, como inexistência de saneamento, água potável, posto de saúde, melhores escolas, etc. Segundo dados atuais dos agentes de Saúde que monitoram a comunidade e que são filhos de Itamatatiua, essa possui cerca de 132 famílias, distribuídas entre a entrada da vila (Ramal), a sede (após a cancela, ao lado da Igreja de Santa Teresa) e depois da sede, quando já há proximidade com as comunidades vizinhas, incluindo Boca de Salina, que faz parte da vila e comporta hoje cerca de duas ou três famílias.
A partir de pesquisa de campo realizada entre os meses de Setembro de 2009 a Janeiro de 2010, podemos destacar que no total existem na comunidade 524 pessoas, sendo 44, 4% homens, 40,7% mulheres e os restantes, crianças. Quanto à tipologia das casas, verificou-se que 25% são de tijolo/adobe, 38% taipa revestida e 36% e taipa não-revestida. Em 88% das casas, o abastecimento de água é feito através de poço ou nascente e apenas 11% pela rede pública; e 79, 7% das crianças e jovens, entre 7 e 14 anos, frequentam regularmente a escola local13.
Trata-se de uma vila rural que vive de uma agricultura de subsistência, da produção de cerâmica e aposentadoria, além do recebimento de benefícios de programas do Governo Federal14, como Bolsa Escola, Bolsa Família e outros. Vale destacar que a produção de cerâmica é uma das principais fontes de renda da comunidade e também elemento divulgador da vila15. Entre os produtos agrícolas estão o arroz, o milho e a mandioca (utilizada para produção da farinha) - práticas tradicionais de agricultura, combinando formas de cultivos individuais com áreas de uso comum, que se alternam no tempo e no espaço de forma harmoniosa com os recursos naturais disponíveis. Não há uma demarcação oficial dos terrenos, salvo algumas cercas em alguns casos; apenas acordos dividindo os espaços, em que cada pessoa sabe onde está o limite de sua roça. A vila possui quatro estabelecimentos comerciais (vendas), uma escola que não possui o pré-escolar e leciona somente o ensino fundamental, obrigando os jovens a concluírem o ensino médio em Alcântara ou em sítios maiores.
Diferente de outras comunidades no estado, em Itamatatiua, as mulheres possuem uma representação singular quando se trata de gerir, a começar por suas casas. Isso pode ser observado a partir da liderança da vila, que é feminina, assim como o comando da Associação das Mulheres Ceramistas de Itamatatiua, em alguns comércios e mesmo no trabalho de roça.
Quanto ao patrimônio material e imaterial, podemos destacar as danças (tambor de crioula, forró de caixa e dança do negro); a Festa de Santa Teresa; as lendas e mitos, representados principalmente nas Fonte do Chora, Pedra de Encantaria (que também se configuram como patrimônio material da vila) e a Imagem da Santa, cujas tentativas de retirá-la da comunidade renderam histórias continuadas até os dias atuais. Essas são parte do cotidiano de Itamatatiua, representando a Fonte do Chora, em particular, um papel simbólico e também ativo, já que serve de fonte de consumo para os moradores16.
O povoado de Itamatatiua se estrutura a partir de um eixo que é materializado pela estrada da povoação, perpendicular à estrada de Bequimão para Ancântara. O centro da povoação surge após o atravessamento de um córrego, e é constituído pelo Cemitério e pela Igreja, ao lado dos quais se ergue a Escola. Este núcleo central é onde, também, se localizam as vendas. No extremo oposto à estrada de Alcântara, e numa zona de casario mais disperso, situa-se a “Pedra da Encantaria”, um local sobrejacente ao povoado e que constituiu uma possível sobrevivência de cultos antigos17.
Por ser uma vila onde o número de idosos é relativamente grande, acaba, por conta da oralidade, representando a manutenção de uma tradição repassada por gerações até a contemporaneidade local. Ao adentrar na comunidade observa-se facilmente que Itamatatiua ainda traz a presença da oralidade e das tradições vinculadas a ela – seja nas suas práticas sociais, como em seu aspecto físico-geográfico18. Apesar de o espaço midiático (celulares, tv, geladeira, modismos, computadores, esse ainda muito no início) estar se inserindo no cotidiano da comunidade de uma forma um tanto rápida, essa ainda mantém fortemente marcada a oralidade em seu dia-a-dia (os mitos, lendas, os negócios na base da confiança – aluguel da casa de forno, pagando com o paneiro de farinha, por exemplo).
Uma comunidade que ainda traz em seu cotidiano a presença do passado com os olhos atentos ao futuro não tão distante, buscando, a seu tempo, uma adequação às necessidades do contemporâneo e também, a união desse com suas tradições transmitidas através de gerações. São os filhos da santa, em terras de negro na continuação de sua história, rompendo a contemporaneidade no conjunto das relações geradas entre a natureza e o espaço que dispõe, junto aos padrões técnicos, econômicos e simbólicoculturais que a caracterizam como uma comunidade remanescente de quilombo, ou simplesmente, Itamatatiua.
São Sebastião dos Pretos19
A comunidade remanescente e/ou quilombo de São Sebastião dos Pretos, estando inserida na modalidade de representação coletiva e enquadrada no artigo 68 que reafirma o caracter étnico, passando a se autodefinir por suas categorias intrínsecas, faz valer seus direitos como “comunidade remanescente de quilombo” e assim ser reconhecida20. Apresenta-se nesta comunicação como objecto de estudo que visa uma reconstrução, a releitura da génesis junto a uma compreenção territorial de adaptação de suas gentes junto ao grupo social, o “quilombo”. Sendo gerador de múltiplas representações e manifestações de caracter identitário e simbólico, factor de grande importância no processo actual, onde comunidades espelham-se a esse processo e se instrumentalizam no que tange sua afirmação junto a uma realidade globalizada (Oostebeek, 2010) . O processo de construção do recorte histórico da comunidade de São Sebastião dos Pretos deu-se através de depoimentos dos informantes.
As comunidades negras do estado do Maranhão formaram-se a partir de situações diversas de fuga e de captura, não diferente de São Sebastião, esta localizada a 15 km da cidade de Bacabal – MA, em uma área de 1.010 Ha, nas proximidades de povoados como Canadá, Engenho, Canduba, etc. Estando circunscrita a um modelo de apropriação fundiária, no alcançe de domínios, doações de extensões de terras, um bem doado aos antigos escravos fugidos que em particular era sempre perto de áreas de fronteiras, nas margens dos rios (estes nas margens do rio Mearim), retendo assim como factor de importância aos antigos escravos fugidos, que ali seria uma área administrada por mecanismos de adaptação, vivida e pensada como um espaço para suas práticas sociais e culturais, relações com a natureza, redes de parentescos e a expectativa da legitimação de um contexto histórico junto a construção de uma consciência dos seus diretos.
A comunidade apresenta aproximadamente 350 anos de existência, segundo a tradição com uma ocupação do território inicialmente liderada por 4 negros fugitivos, vindos da região do Seringal, para essas terras doadas, que posteriormente receberam o nome de São Sebastião, em homenagem ao Santo lá recebido. Diante dos relatos dos mais velhos, o território apresentava uma abundância de mata, como também a existência de dois grandes lagos, de nome Lago Limpo e Gamileira, ficando nas extremidades, fronteira com outros povoados, facilitando assim a sobrevivência, comunicação e fuga.
Salienta-se também nos depoimentos que a origem dos primeiros moradores da comunidade são oriundos de feitorias da região de Pedreiras – MA, município com grande contingente populacional de negros concentrados nas fazendas de algodão e arroz da região do Médio Mearim.
Durante este longo período de permanência no povoado de São Sebastião dos Pretos, os pretos fugidos foram deixando vestígios de sua passagem e existência no local; o exemplo mais significativo é a existência de uma panela de Ferro que pesa aproximadamente 80 Kg e uma corrente com coleira que os fugitivos trouxeram por ocasião das fugas feitas pelos mesmos, símbolos que na actualidade funcionam como evidências arqueológicas, ou seja, uma cultura material que representa um marco estabelecido na memória dos velhos como elemento essencial de afirmação à identidade do grupo, e estabelecida diante da globalização como estratégias de legitimação e preservação do território.
Além dos marcos materiais existentes, a comunidade remanescente apresenta junto a essa conjuntura histórica, outros marcos; símbolos territóriais e culturais importantes ao processo, como por exemplo as referências ao santo padroeiro, São Sebastião. Uma doação à comunidade de um morador de um povoado vizinho, de nome Centrim, que já festejava a São Sebastião, está na origem da escolha do Santo patrono. Neste lugar dos negros fugidos de São Sebastião dos Pretos, para além das correntes e da panela de ferro, também uma capela de adobe e uma árvore centenária de nome Barrigudeira, constituem marcos fundamentais da paisagem. É importante sublinhar esta continuidade entre os artefactos arquitectónicos e os monumentos naturais, na configuração da paisagem antropizada.
A partir do surgimento do povoado e do início natural do processo de organização e estruturação social, é que o território passa a ser gradativamente ocupado por novas unidades familiares, expressando as relações de parentesco e seu ponto de origem em relação ao primeiro grupo, definindo um período de transição de antigos negros, escravos fugidos a negros libertos, estes já na condição de herdeiros. Processo de transição que chega como demarcador da nova identidade étnica ao sítio (SOUZA FILHO. B, 2008).
No decorrer dos tempos, o território das áreas de domínio familiar , juntamente com as de caracter produtivo e/ou temporário, foram sendo cercados pelo latifúndio, áreas de domínio privado e não de direito comum e/ou colectivo. Neste caso, o uso perpassa por autorizações e após a colheita, deixada de repouso, tornando-se um património outra vez comum e de uso colectivo.
Em meados de 1995 a comunidade de São Sebastião dos Pretos passou a se interessar pela mudança desta realidade, exigindo de forma definitiva a demarcação e a documentação legal de sua área territorial, quando da criação da Associação de Moradores Produtores e Produtoras Rural do Quilombo São Sebastião dos Pretos. O povoado contou com apoio de vários setores da sociedade, entre eles políticos e a igreja católica, na pessoa do Frei Hermano que os ajudou nos primeiros encaminhamentos de organização da comunidade e na construção de uma melhor infraestrutura ao local, como exemplo a construção da casa de farinha, além da doutrinação no catolicismo religioso. Actualmente, o povoado apresenta uma estrutura semelhante à de Itamatatiua, com a Escola e a Igreja dominando o espaço central. Ocorrem porém duas diferenças importantes: a preponderância cabe, em São Sebastião, à Escola (significativamente erguida no local da primitiva capela) e do ponto de vista da malha urbana assiste-se a uma rápida substituição das construções em adobe por casas de alvenaria21.
Outro aspecto importante a salientar nesta construção histórica é o papel das entidades ligadas ao segmento étnico no que tange à conquista legal dos territórios, condição essencial para a permanência de alguns quilombos e /ou comunidades negras até os dias actuais, ai se enquadrando o quilombo de São Sebastião dos Pretos. É o caso da ACONERUQ - Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Estado do Maranhão, entidade de papel determinante para a conquista do reconhecimento e da titulação da terra às inúmeras comunidades existentes não só na região em destaque, mas em todo o território maranhense. Na sequência deste processo, muitos foram os benefícios já alcançados pelo povoado, entre eles o reconhecimento e a titulação da comunidade como área remanescente de quilombo junto à Fundação Palmares, a energia elétrica, um poço artesiano para o abastecimento de água à comunidade, a estrada e os projetos designados pelo Governo Federal, como casas de alvenaria e forno de farinha.
O povoado apresenta um total de 70 edificações, com diferentes tipologias e funcionalidades (ainda que nas entrevistas com a comunidade todas sejam designadas pela palavra “casas”), sendo: 1 igreja, 1 tenda( casa do terecô/ umbanda, manifestação de cunho cultural e religioso), 1 escola municipal de ensino fundamental da 5º à 8º série, 1 clube de festa (espaço com duas funções, de clube e de associação comunitária), 1 mercearia, 1 área coberta para a quebra de coco babaçu, 1 casa de bumba-meu-boi, 50 casas ocupadas e as demais desocupadas temporariamente. Regista-se ainda a presença de 1 Cruz (como marco da fundação, provavelmente local da capela primitiva), 1 chafariz, 3 casas de farinha (1 em desuso pelo grupo), 1 campo de futebol, 1 telefone público, 2 lagos.
O cercado, o terreiro, o quintal são os pontos delimitadores deste dominio social e diferenciador dentro do grupo. Entretando, estes pontos delimitadores servem além de estreitamento e isolamento da área de domínio privado, também como espaço de realização de diversas atividades rotineiras, como a limpeza diária, a criação de animais domésticos para subsistência da familia, o plantio, a colheita, local também de trocas de saberes, conversas etc, denominados pela comunidade como roças.
A comunidade de São Sebastião dos Pretos apresenta como actividade dominante em seu território a roça de toco, caracterizada pela limpeza de uma grande área de mata nativa, demarcada por linha (que segue os padrões de medição do grupo), seguida de queimada e posteriormente cultivo, seja do arroz, do feijão e/ou da mandioca para a fabricação de farinha. Complementam essa realidade a pesca, a colheita e a quebra do coco babaçu, uma palmeira dominante e nativa na área, actividade dominante das mulheres do povoado, identificadas como quebradeiras de coco.
Discussão
As comunidades de São Sebastião dos Pretos e de Itamatatiua, para além das convergências históricas e de objectivos (reconhecimento da posse da terra, reestruturação produtiva), ilustram dois contextos bem diversos. A matriz de Itamatatiua é de produção agro-artesanal, em contexto caracterizado por apego às raízes identitárias e com liderança feminina. Esta matriz revela-se no conservadorismo dos artefactos, ainda que a produção artesanal para turismo acolha temáticas exógenas, inspiradas na televisão ou noutras fontes não relacionadas com a história da comunidade. A matriz de São Sebastião dos Pretos é agrícola, em contexto marcado pela vontade de mudança (ilustrada pelas novas casas de alvenaria, apesar de estas introduzirem novos focos de tensão intra-comunitária, por não serem disponibilizadas para toda a população) e com liderança masculina. A proximidade de São Sebastião dos Pretos em relação a um grande centro urbano e comercial como Bacabal (em tudo contrastando com Alcântara) será um factor actual com muito peso nesta matriz, que do ponto de vista sócio-económico se inscreve com mais rapidez no processo de globalização.
Registam-se, assim, alguns vectores que marcam a distinção entre as comunidades:
Itamatatiua | São Sebastião dos Pretos |
Economia agro-artesanal (cadeias produtivas da roça e da cerâmica) | Economia agrícola (cadeias produtivas da roça e do babaçu) |
Espaço urbano centrado no complexo Igreja-cemitério-Escola-Comércio-Lazer, em que pontua o cemitério. | Espaço urbano bipolar: espaço central Escola-Igreja; espaço alternativo com o Clube |
Paisagem urbana com permanências de cultos abandonados | Ausência desse tipo de vestígios |
Estratégia de conservação de costumes e sua valorização. | Estratégia de integração no sistema comercial. |
Liderança feminina. | Liderança masculina. |
O tempo demonstrará qual das estratégias serve melhor os interesses, largamente semelhantes, das duas comunidades. Mas a capacidade reivindicativa de São Sebastião dos Pretos parece ser superior, pese embora a maior coerência identitária em Itamatatiua. Este processo poderá ter, também, uma raiz histórica, pois enquanto Itamatatiua é um povoado de fundação Europeia (ainda que, provavelmente, sobre pré-existente presença indígena) que mais tarde foi doado, o caso de São Sebastião dos Pretos reflecte um processo de conquista desde o seu início. Esta distinta origem ajudará a explicar, também, a maior vontade de mudança e menor apego às origens em São Sebastião.
Os estudos futuros deverão permitir aprofundar estas questões.
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Consultas em linha
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2 Graduada em Comunicação Social, pela Universidade Federal do Maranhão/ Mestranda em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre pelo Instituto Politécnico de Tomar e Universidade Trás-os-Montes/Erasmus Mundus (Portugal), com foco em Territorialidade e Gestão do Patrimônio. E-mail: reismilena@ig.com.br
3 Doutor em Arqueologia, Professor e Coordenador do Instituto Politécnico de Tomar e Director do Mestrado em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre (IPT/UTAD, Portugal). E-mail: loost@ipt.pt
4 U.I&D nº73 (Fundação para a Ciência e Tecnologia)
5 Pesquisa desenvolvida por Milena Reis
6 Os séculos XVII e XVIII foram os períodos de maior crescimento da Ordem Carmelita no Brasil. Rapidamente conquistaram novas regiões, aumentando consideravelmente sua influência na colônia brasileira. Ao mesmo tempo, observamos que eles se fixaram nas principais regiões econômicas do Brasil, onde a população mais abastada concedia esmolas e doações para manutenção e sustento dos religiosos. Gradativamente, a Ordem Carmelitana foi construindo um grande patrimônio composto por casas, templos religiosos, fazendas e engenhos, por isso se tornaram parcialmente independentes do Estado Português (ARAÚJO, 2008).
7 De acordo com ofício enviado em 6 de julho de 1797 pelo então governador Fernando Antônio de Noronha, os Carmelitas possuíam: 02 conventos, sendo um em São Luis e outro em Alcântara (para quem foi feita a doação da Fazenda Tamatatiua); o Hospício do Bonfim, com 30 religiosos; 257 escravos; 07 fazendas; 24 léguas de terras e 640 cabeças de gado vacum e cavalar (LIMA, 1998 apud MINC/IPHAN).
8 O INCRA (Instituto Nacional de Reforma Agrária) é uma autarquia federal criada pelo Decreto n. 1.110, de 9 de julho de 1970 com a missão prioritária de realizar a Reforma Agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União.
9 Entidade Pública brasileira vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei Federal n° 7.668, de 22 de abril de 1988, cujo objetivo é promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira (art. 1°).
10 Segundo a Constituição Federal do Brasil, de 1988, por meio do Artigo 68, “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
11 A associação Brasileira de Antropologia considera quilombo como toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado.
12 Segundo relato de alguns moradores, a comunidade de Tubarão e Mocajituba II fazem parte das terras de Itamatatiua. Entretanto, para outros e segundo estudos antropológicos já realizados na área, elas se confguram hoje como comunidades distintas, ainda que sua relação com Itamatatiua quanto à parentescos e/ou mesmo relações sócioeconômicas seja presente e intensa.
13 Todos os dados foram levantados com a colaboração das agentes de saúde, Creuza de Jesus e Maria da Graça Oliveira.
14 Programas de transferências condicionadas, dos Governo Lula e Fernando Henrique Cardoso (Bolsa Escola), contra a pobreza, são políticas sociais correntemente empregadas em várias partes do mundo para combater e reduzir a pobreza.
15 A prática da produção de cerâmica vem desde o tempo da Ordem Carmelita. Segundo depoimento de uma das ceramistas, a pessoa a iniciar essa prática, repassando-a, de geração em geração, foi um homem. Depois disso, a tradição foi sendo repassada para as mulheres de Itamatatiua, que desde então, comandam a produção, distribuição e vendas do artefato, que ainda se configura em produtos rústicos, feitos por meio de diversas técnicas de modelagem.
16 Reza a tradição que a Fonte do Chora, assim como a Pedra de Encantaria, é protegida por ‘encantados’ e que esses, quando não gostam de alguma pessoa que os visita, jogam-lhe algum tipo de encanto. A comunidade não sabe ao certo quando e como surgiram tais monumentos, mas acreditam que eles já estejam no sítio mesmo antes da sua fundação. No caso da Fonte do Chora, foi lá que, segundo depoimento de alguns moradores, que encontraram a imagem de Santa Teresa, que na época, chorava sangue.
17 Embora sem memória estruturada, este local é temido por diversos moradores. Trata-se de um rochedo com vaga aparência de crânio, que provavelmente assim teria sido reconhecido pelas populações iniciais do lugar.
18 Itamatatiua não é uma comunidade litorânea, como muitas dentro do território quilombola de Alcântara, mas possui uma região cercada por babaçuais, rio, onde é possível ver crianças e adultos lavando os animais, casas de palha e barro, muitas das quais com o mesmo formato (uma pequena janela, uma porta, poucos compartimentos), como havia no período escravocrata.
19 Pesquisa desenvolvida por Geysa Santos.
20 PVN - Projecto Vida de Negro no Ma: uma experiência de luta, organização e resistência nos territórios quilombolas. 2005. Pág 18.
21 Sendo um progresso saudado pela comunidade, que se vê assim liberta da tarefa de refazer coberturas a cada dois anos e paredes a cada oito, as casas de alvenaria obedecem contudo a um modelo pré-definido, não necessariamente adequado às amplitudes térmicas do local.
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